|
1.- Introdução à problemática da telefonia
Já no final do sec XX a telefonia tinha transcendido em muito sua concepção inicial: comunicação à distância da voz humana. Hoje, é enorme a quantidade e a diversidade dos serviços baseados em telefonia e que diariamente são usados no cotidiano do até mais simples cidadão: fax, acesso a serviços bancários, Internet, etc.
Para que esses serviços fossem disseminados, foi necessário construir gigantescas redes telefônicas, alastrando-se pelos mais remotos pontos do planeta e composta de fios de cobre, de fibras ópticas, cabos submarinos e outros meios de conexão. Além disso, para que esses serviços tivessem um funcionamento seguro e eficiente, foram necessários muitos estudos matemáticos e simulações computacionais para que chegássemos a entender como essas redes imensas devem ser projetadas e podem ser controladas.A complexidade das atuais redes telefônicas torna difícil isolar os fatores determinando seu comportamento. Ao longo do dia poderemos ter períodos de ociosidade e de congestionamento. Para os engenheiros, é impossível prever o programa de TV que resolveu fazer uma votação premiada por telefone e que acabará produzindo a sobrecarga de alguma estação na rede. Igualmente impossível saber prever a amplitude dos estragos provocados pelo trator que, trabalhando numa estrada, acidentalmente arrebentou um cabo telefônico.
A saída foi usar uma abordagem probabilista para viabilizar os estudos e simulações necessárias. Os engenheiros encontraram na Teoria dos Processos Estocásticos, e em particular nos processos de Markov, os conceitos e instrumentos matemáticos apropriados para tal.
Posteriormente, ao longo do sec XX, os engenheiros constataram que a natureza matemática de muitos dos problemas associados às redes telefônicas são essencialmente iguais aos encontrados em várias áreas da engenharia, como no estudo e projeto de redes de computadores, das malhas rodo e ferroviárias, bem como no agenciamento de tarefas indústriais. As idéias e métodos correspondentes foram abstraídas e hoje constituem uma importante disciplina da Matemática Aplicada, chamada de Teoria das Filas.Nosso objetivo aqui é dar uma rápida idéia da contribuição da Matemática na área da telefonia, sem entrar em tecnicalidades.
2.- O problema básico da telefonia
Sob um ponto de vista muito ingênuo, a tarefa do projeto de uma central telefônica parece ser muito simples: desde que conhecessemos a demanda de ligações, tudo o que o engenheiro teria de fazer seria calcular o número de linhas ( ou canais, ou troncos telefônicos ) que seriam suficientes para atender a tal demanda.
Dizemos que esse ponto de vista é ingênuo pois que vivemos num mundo de recursos limitados e, mesmo que conseguissemos colocar um número de linhas capaz de cobrir totalmente a atual demanda, a tendência é essa demanda crescer no tempo e superar essa capacidade. Além disso, conforme já observamos no início, temos mil e um fatores imprevisíveis que podem provocar um pico inesperado de demanda a ponto de ultrapassar a atual capacidade de atendimento da central, estabelecendo-se um estado de congestionamento.
Assim que, no mundo real, o engenheiro que projeta uma central telefónica contenta-se em achar um número de linhas que garanta que a probabilidade de haver um excesso de demanda, ou congestionamento da central, não seja maior do que um valor considerado razoável.
Consequentemente, o projeto de uma central telefônica envolverá três variáveis e não duas. Explicitemos mais cuidadosamente todas essas variáveis:
- o número de linhas ( ou canais, ou troncos telefônicos ) que estarão à disposição dos usuários da central telefônica em projeto
- a demanda da central, ou seja: o volume de tempo - expresso em horas - do total das ligações solicitadas à central em uma hora; ou seja: a unidade de medida da demanda é quantidade de horas de ligaçóes por hora, sendo que os engenheiros deram o nome de erlang a essa unidade de medida.
EXEMPLO:
Numa central telefônica com 100 linhas, qual a demanda produzida se cada linha recebe, em média, 2 chamadas / hora e essas tem duração média de 3 minutos?
Solução:
chegam à central 100 x 2 = 200 chamadas por hora, que ocupam 200 x 3 = 600 minutos = 10 horas. Consequentemente, a demanda é de 10 horas por hora, ou seja: 10 erlang.- o congestionamento provável da central, ou seja: o provável percentual de chamadas que encontrarão a central ocupada
número de linhas da central = L demanda na central = d congestionamento provável = c
Posto isto, vemos que o projeto de uma central telefônica estará resolvido se conseguirmos expressar o número L de linhas em termos da demanda d a ser atendida e do congestionamento provável c que estamos dispostos a aceitar. Assim que o problema básico da telefonia é: achar a função L = L ( c , d ) .3.- A solução idealizada de Erlang
Os primeiros estudos teóricos das redes telefônicas foram feitos no inicio do sec XX, pelo matemático dinarmaquês A. K. Erlang, quando esse trabalhava na central telefônica de Copenhagen. Os resultados que ele conseguiu ainda hoje são usados na telefonia.
Para viabilizar esses estudos, Erlang fez as seguintes idealizações de comportamento da central telefônica:
As chamadas telefônicas chegam aleatoriamente na central. Elas produzem ou não conexão com seu destino, dependendo da disponibilidade momentânea da central. Havendo linha disponível, a ligação é feita instantâneamente; caso contrário, quando todos os canais estiverem ocupados, a chamada do usuário recebe o sinal de "ocupado" e a mesma é imediatamente perdida ( ou seja: ela não fica esperando até a liberação de uma linha; ao contrário, posteriormente, o usuário deverá tentar outra ligação ).
Trabalhando com essas idealizações de central telefônica , o primeiro resultado importante que Erlang conseguiu ocorreu em 1 909, quando descobriu que as chamadas podiam muito bem ser aproximadas por uma distribuição de probabilidades do tipo de Poisson. Isso foi feito no trabalho: "The Theory of Probabilities and Telephone Conversations".
A partir desse resultado, mais alguns anos de trabalho lhe permitiram relacionar as três variáveis básicas: c, L e d. Esse resultado, ainda hoje fundamental tanto para telefonia clássica como para telefonia celular, foi publicado no artigo "Solution of some Problems in the Theory of Probabilities of Significance in Automatic Telephone Exchanges", 1 913 e pode ser resumido pela seguinte fórmula:
Observe que trata-se de uma relação do tipo c = c ( L , d ) e não do tipo L = L ( c , d ), conforme estávamos esperando. Adiante, trataremos de enfrentar esse pequeno problema. Por enquanto, tratemos de entender o significado dessa fórmula:Exemplo:
Uma central com L = 15 linhas e demanda d = 10 erlang terá um congestionamento de c = c ( 15, 10 ) = 0.036, ou seja: 3.6% das chamadas receberão o sinal de ocupado.Exemplo:
Verifiquemos o que ocorre com o congestionamento de uma central telefônica de 10 linhas à medida que a demanda aumenta rapidamente, sucessivamente dobrando de valor. Para tal, verifique os valores da tabela abaixo e identifique qual gráfico representa a curva c = c ( 10, d ):
d c 5 0.018 10 0.215 20 0.538 40 0.758 80 0.877
Exemplo:
Podemos escrever d = dA + d r , onde dA = demanda atendida e d r = demanda recusada. A razão u = dA / L representa o grau de utilização da central.
Tomando c = dr / d , mostre que:Exemplo:
Preencha os quadros abaixo:
central de 10 linhas d u 5 10 20 0.92 40 80
central de 20 linhas d u 5 10 20 0.84 40 80 e verifique que os gráficos de u ( 10, d ) e u ( 20, d ) estão entre os três desenhados acima. Interprete-os.
4.- Aplicação ao projeto de centrais telefônicas
Já observamos que a fórmula de Erlang nos dá uma relação do tipo c = c ( L , d ), enquanto que o problema do projeto consiste em achar o número L de linhas em função do grau de congestionamento aceitável e da demanda envolvida; ou seja: para projeto, o conveniente é trabalharmos com relação da forma L = L ( c , d ). A tentativa de transformar, algebricamente, a relação c = c ( L , d ) em uma relação tipo L = L ( c , d ) não frutifica. Isso nos deixa duas alternativas:
- tratar c = c ( L , d ) como uma equação na incógnita L
- ou fazermos uma tabela de valores L para uma grande quantidade de possibilidades de d e c, e então usar interpolação
A maioria dos engenheiros prefere a segunda alternativa acima. Contudo, por ser matematicamente mais natural, tratemos da primeira alternativa. Para facilitar, raciocinemos em cima de um exemplo numérico:
Seja calcular o número de linhas L necessárias para construir uma central telefónica capaz de atender uma demanda de d = 55 erlang com congestionamento de c = 0.01 ( ou seja: nessa central, apenas 1 % das chamadas deverão resultar ocupadas ).A equação c ( L, 55 ) = 0.01 terá de ser resolvida por processo iterativo. Para isso usa-se que, segundo obtemos calculando via a formula de Erlang, para d < 75 erlang e com c = 0.01 os L são dados aproximadamente por 6 + d / 0.85. Consequentemente, para d = 55 , temos que aproximadamente L = 70. A partir disso, obtemos uma sequência de intervalos envolvendo o valor exato de L e que vão diminuindo sucessivamente:
c ( 70, 55 ) = 0.0074 c ( 60, 55 ) = 0.0532 c ( 65, 55 ) = 0.0228 c ( 67, 55 ) = 0.0151 c ( 69, 55 ) = 0.0095 c ( 68, 55 ) = 0.0128 de modo que, como L tem de ser um número inteiro, devemos ter L = 69 linhas.
Bibliografia complementar:
O leitor que desejar ver uma demonstração da fórmula de Erlang, bem como maiores informações sobre a análise e projeto de centrais telefônicas, pode consultar o livro:
Siemens: Teoria do Tráfego Telefônico. Tabelas e gráficos.
Editora E. Blucher Ltda, São Paulo, 1975.
versão: 09-fev-2 001
localize esta página em: http://athena.mat.ufrgs.br/~portosil/cultura.html
© J.F. Porto da Silveira ( portosil@mat.ufrgs.br )
permitida a reprodução, desde que com fins acadêmicos e não comerciais