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Até recentemente, era comum creditar-se a decisão de qualquer evento aos deuses
ou alguma outra causa sobrenatural. Simplesmente não havia espaço para uma
abordagem que atribuisse ao acaso, e tão somente a ele, essas ocorrências. Isso foi muito bem resumido por M. G. Kendall, quando disse: "A Humanidade precisou de centenas de anos para se acostumar com um mundo onde alguns eventos não tinham causa... ou eram determinados por causas tão remotas que somente podiam ser razoavelmente representados por modelos não-casuais." Tendo isso em vista, fica mais fácil percebermos porque a abordagem matemática do acaso, do azar e do risco só iniciou há pouco mais de 500 anos. A disciplina que assim foi construída, a Teoria das Probabilidades, nasceu , mais precisamente falando, das tentativas de quantificação dos riscos dos seguros e de avaliar as chances de se ganhar em jogos de azar. |
1.- OS SEGUROS Surgimento dos seguros Ocorreu há mais de 5 000 anos entre os comerciantes marítimos mesopotâmicos e fenícios, aplicados à perda de carga de navios ( naufrágio ou roubo ). A prática foi continuada pelos gregos e romanos e acabou chegando no Mundo Cristão Medieval através dos comerciantes marítimos italianos. Muito pouco chegou até nós acerca das técnicas empregadas pelos seguradores daqueles tempos, mas é garantido afirmar que baseavam-se em estimavas empíricas das probabilidades de acidentes para estipularem as taxas e prêmios correspondentes. O início da matematização dos seguros Com o término da Idade Média, o crescimento dos centros urbanos levou à popularização de um novo tipo de seguro: o seguro de vida. É em torno desses que surgirão os primeiros estudos matemáticos sobre seguros, nos 1 500 ' s. Nao deixa de ser curioso observar que, nessa época, houve um enorme aumento nos negócios de seguros marítimos ( associados aos preciosos carregamentos trazidos das Américas e das Indias ) mas os seguradores continuaram a usar as milenares técnicas empíricas. A mais antiga tentativa de um estudo matemático dos seguros de vida é devida a Cardano, em 1 570 ( em seu De proportionibus Libri V ) . Seu trabalho, contudo, teve mínima repercussão, provavelmente por ter pouca praticidade. o amadurecimento da matemática dos seguros O primeiro trabalho prático na área dos seguros de vida é devido a Halley ( o mesmo do cometa ) em 1693 ( Degrees of Mortality of Mankind ). Nesse trabalho, Halley mostrou como calcular o valor da anuidade do seguro em termos da expectativa de vida da pessoa e da probabilidade de que ela sobreviva por um ou mais anos. Com Daniel Bernoulli, c. 1 730, a matemática dos seguros atinge um estado bastante maduro. Ele retoma o clássico problema de, a partir de um número dado de recem nascidos, calcular o número esperado de sobreviventes após n anos. Ele também dá os primeiros passos em direção a novos tipos de seguros calculando, por exemplo, a mortalidade causada pela varíola em pessoas de idade dada. Ao mesmo tempo, começaram a aparecer as primeiras grandes companhias de seguros as quais tiveram, assim, condições de se estabelecer com um embasamento científico. De lá para cá, os negócios de seguros ampliaram-se e sofistificaram-se cada vez mais a ponto de, em alguns países europeus, tornarem-se um mercado de trabalho que absorve quase um quarto dos egressos de cursos de Matemática. |
2.- OS JOGOS DE AZAR Surgimento dos jogos de azar Os jogos de azar são, provavelmente, tão velhos quanto a Humanidade: temos provas arqueológicas da prática do jogo do osso há 40 000 anos. Ademais, jogava-se e joga-se praticamente pelo mundo inteiro, sendo raras as sociedades que não o faziam ( polinésios, siberianos, e algumas outras ). Historicamente, os jogos mais praticados foram o do osso ( conhecido pelo mundo inteiro ) e o de dados ( surgiu na India e Mesopotamia c. 3 000 AC, como evolução do jogo do osso, e daí se difundiu para o mundo grego, romano e cristão ). É também importante lembrar que antigamente jogava-se em apostas bem como para prever o futuro, decidir disputas, dividir heranças, etc. As mais antigas matematizações de jogos de azar Resumem-se na mera enumeração das possibilidades de se obter um dado resultado no jogo, não havendo preocupação probabilista explícita. Curiosamente, o mais antigo desses registros ocorre num contexto nada profano: c. 950 dC um bispo belga, Wibold, inventou um jogo religioso que, a cada um dos 56 possíveis resultados do lance de 3 dados, atribuia uma penitência ou a prática de uma virtude correspondente. Em várias obras literárias medievais ( inclusive na Divina Comédia de Dante ) encontramos enumeração das possibilidades de se obter o resultado 2, 3,...,12 ao jogar dois dados, idem de se obter 3,4,...,18 ao jogar três dados, etc. Os primeiros cálculos de probabilídades em jogos de azar
Pacioli c. 1 500 em sua famosa Summa, estudou um problema que se tornou famoso como Problema dos Pontos: Dois jogadores disputavam um prêmio que seria dado a quem primeiro fizesse 6 pontos no jogo da balla. Quando o primeiro jogador tinha 5 pontos e o segundo tinha 3 pontos, foi preciso interromper o jogo. Como dividir o prêmio ? Sua solução, corretamente, faz uma divisão proporcional à probabilidade de vitória de cada jogador. Assim foi introduzida, de modo bastante intuitivo, a noção de esperança matemática, ou seja o produto do ganho eventual pela probabilidade desse ganho. Cardano 1 526 escreveu um pequeno Manual de Jogos de Azar ( Liber de Ludo Aleae ) onde resolveu vários problemas de enumeração e retomou os problemas abordados por Pacioli.
Tartaglia 1 556 Resume-se a dedicar algumas páginas de seu livro General Trattato aos problemas de Pacioli. Galileo c. 1 590 é autor de outro manual sobre jogos, o Considerações sobre o Jogo de Dados. Nos parece ter sido aí a primeira vez que se faz uma comparação explícita de frequências de ocorrência. Nesse livrinho, entre outras coisas, Galileo explica a um amigo porque , embora sejam 6 as somas que permitem fazermos 9 pontos ao jogarmos 3 dados e tambem 6 as que fazem 10 pontos, a experiência mostra que o 10 é mais comum de ocorrer do que o 9. O amadurecimento das técnicas combinatórias em probabilidades Até então as técnicas de enumeração das possibilidades favoráveis num evento aleatório eram simplórias e restritas a casos numéricos. Para que se pudesse tratar de problemas envolvendo muitas possibilidades ou eventos de natureza genérica, precisava-se técnicas mais apuradas do que as que empregaram Cardano e Tartaglia. A principal deficiência técnica desses italianos era a precariedade de sua notação, a qual não tinha como tratar de casos genéricos. Essa capacidade só foi atingida com o Cálculo Literal ( Logística Speciosa ) de François Viète c. 1 600 e com a álgebra desenvolvida por Descartes em sua La Géometrie c. 1630. Consequentemente, não deve vir como surpresa que é só na metade do século dos 1600's que aparecem as condições para a abordagem de problemas gerais de probabilidades. Isso coube a dois outros franceses: Fermat e Pascal. Em 1 654, um famoso jogador profissional, Antoine Gombauld, pomposamente autodenomidado o Cavaleiro de Méré, escreveu uma carta ao famoso matemático francês Blaise Pascal, propondo-lhe resolver alguns problemas matemáticos que tinha encontrado em suas lides com jogos de azar. Entre os problemas propostos por de Méré estava o seguinte: Jogando com um par de dados honestos, quantos lances são necessários para que tenhamos uma chance favorável ( ou seja, de mais de 50% ) de obtermos um duplo-seis, ao menos uma vez?O interesse de de Méré no problema residia no fato de que sua "solução" para o mesmo não funcionava na prática, produzindo-lhe constantes prejuízos. Com efeito, ele não conseguia ver o que estava errado em seu raciocínio: " Quando jogamos apenas um dado, temos chance 1/6 de obter um seis, e como 3 x 1/6 = 50% e 4 x 1/6 = 67%, vemos que precisamos jogá-lo 4 vezes para ter chance maior do que 50% de obtermos, ao menos uma vez, um seis. Ora, quando jogamos um par de dados temos 36 possibilidades, ou seja 6 vezes mais possibilidades de quando jogamos um único dado, consequentemente, precisaremos jogar o par de dados 6 x 4 = 24 vezes para ter chance maior do que 50% de obtermos, ao menos uma vez, um duplo seis". Pascal percebeu o erro de de Méré e se dispôs a achar a solução correta. Trocando idéias com o grande matemático Fermat, logo se convenceram que a resolução teria de passar pela enumeração combinatorial das possibilidades de ocorrência do duplo-seis. Procurando uma maneira inteligente de fazer essa trabalhosa enumeração, acabaram dando plena maturidade às técnicas introduzidas por Cardano e Tartaglia:
Dessa maneira, conseguiram mostrar, cada um à sua maneira, que:
EXERCICIO : O astrágalo, o osso do "jogo do osso", pode cair sobre quatro de suas faces. Antigamente, essas recebiam os valores 4 e 3 para as faces maiores, e 1 e 6 para as duas menores. Experimentos deram as seguintes probabilidades de ocorrência desses lados: P(4)=0.39, P(3)=0.37 e P(1)=P(6)=0.12 . Antigamente, um uso comum do jogo do osso era na previsão do futuro, para o que jogava-se cinco ossos de cada vez. Um exemplo sendo a seguinte adivinhação grega, chamada "o lance do Zeus salvador": Foram um 1, dois 3 e dois 4 ... Os deuses te deram um augúrio favorável. Não tire-o da cabeça, pois nenhum mal cairá sobre ti. Pede-se mostrar que a probabilidade de ocorrer esse augúrio favorável é: ( 5! / 2! 2! ) (0.12) (0.37)2(0.39)2 = 0.075 EXERCICIO : Relativamente ao "jogo religioso" do Bispo Wibold, mostre que ao jogarmos 3 dados são 56 os possíveis resultados. Faça isso:
EXERCICIO : No que toca ao problema di duplo-seis proposto pelo jogador de Méré:
EXERCICIO : Liste todos os livros sobre probabilidades, citados acima e que foram publicados antes de Fermat e Pascal. |
3.- O AMADURECIMENTO DOS ESTUDOS DE PROBABILIDADES A Teoria Clássica das Probabilidades Procurando aprofundar a abordagem combinatória de Fermat, Jakob Bernoulli acabou iniciando o processo de abstração das probabilidades ( livrando-as das limitações dos seguros e jogos ) e foi além da mera resolução de problemas concretos, produzindo os primeiros teoremas sobre o assunto ( como a Lei dos Grandes Números ). Os resultados de Bernoulli foram publicados em seu livro Ars Conjectandi de 1 713, o qual foi seguido do Doctrine of Chance de de Moivre ( 1 716 ) e do Laws of Chance de Simpson ( 1 740 ). Finalmente, em 1 812, Laplace publicou seu tratado Théorie Analytique des Probabilités que foi o maior marco dessa etapa clássica da Teoria das Probabilidades. A partir daí, os estudos clássicos de probabilidades aceleraram-se e continuaram ao longo do século passado e início desse por grandes matemáticos, como Gauss, Poisson, Poincaré, Markov, Borel, etc. A Teoria Moderna das Probabilidades Em 1 933, Andrei Kolmogorov iniciou a etapa moderna da Teoria das Probabilidades ao apresentar uma axiomatização rigorosa e abstrata, baseada na Teoria dos Conjuntos e reduzindo a Teoria das Probabilidades à Teoria da Integração . |
4.- PARA SABER MAIS SOBRE A HISTORIA DA PROBABILIDADES
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