O sistema de numeração romano. Qual deles? |
O assunto "sistema de numeração romano" é um dos mais populares na Escola. É, também, uma magnífica fonte de parvoíces e fantasias para quem ignorar a advertência que temos feito em nosso material histórico: conceitos, métodos, terminologia, notação, valores e motivações de antigamente poucas vezes são iguais aos atuais
Em ordem a evitar um texto excessivamente longo, dividiremos nossa abordagem em duas partes:
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A maneira mais usual de os historiadores da Matemática mostrarem que o sistema de numeração romano-romano, aquele usado pelos antigos romanos, é bastante diferente do que hoje a maioria das pessoas chama de "sistema de numeração romano" é, simplesmente, mostrar uma foto da Columna Rostrata de Duilius. Esse monumento foi mandado construir em 260 AC, pelo Cônsul Duilius, em comemoração de sua vitória naval sobre os cartagineses; originalmente erigido no Fórum de Roma, hoje é uma das atrações turísticas do Palazzo dei Conservatori, na Colina do Capitolium. Seu interesse matemático reside no fato de ser o mais antigo documento romano que exibe a representação escrita de números muito grandes.
Acima, fizemos um destaque da parte mais interessante da Columna Rostrata:
o trecho onde os romanos inscreveram a justaposição de 23 cópias do algarismo
( ( ( I ) ) ) , que
era o algarismo dos antigos romanos para representar 100 000 .
Note que
isso foi feito de um modo totalmente diferente do que aprendemos na escola.
Note que, a partir de 500, os seus algarismos eram totalmente distintos dos
que hoje empregamos no sistema romano-moderno. Observe, em particular, que
eles não usavam M para 1000 e seu 500 não era a letra D,
era apenas parecido com essa letra.
note que NÃO estamos nos limitando a exibir curiosidades para entreter alunos desmotivados, tais como meras diferenças caligráficas com o sistema romano que aprendemos na escola. Acima de tudo, estamos tratando de diferenças estruturais entre sistemas de numeração ! Bem, passemos aos numerais "romanos" da Idade Média: Com o término do Império Romano, o Mundo Cristão lentamente iniciou a se desenvolver ao longo da Idade Média. A destruição e caos trazidos pelas invasões bárbaras e vikings afetou duramente os estudos na Europa, a qual viveu vários séculos de profunda ignorância e generalizado analfabetismo. Foi somente com a criação do sistema de ensino de Carlos Magno sec IX e, principalmente, com o Renascimento Científico sec XII, que a escrita e as atividades matemáticas voltaram à luz do dia.
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O sistema romano-romano, provavelmente, é originário do sistema etrusco. Os romanos mantiveram o uso de base 5-10, porém inverteram o sentido da escritura dos algarismos de "da esquerda para direita" para "da direita para esquerda", e gradativamente tenderam a dar um formato mais ou menos literal aos algarismos. Contudo, em oposição à parte mais "letrada" do povo romano, como os burocratas e a aristocracia, a grande parte da população, por ter pouca ou nenhuma instrução, preferia usar os símbolos etruscos pois que mais espontâneos e fáceis de desenhar ou rabiscar. Disso tudo, resultava uma enorme variedade na forma dos algarismos e nas regras de escritura dos numerais. Apesar dessa variedade toda, podemos dizer que entre eles a representação dos números gravitava em torno do seguinte sistema básico, que poderíamos chamar de "o" sistema romano-romano:
Se a variedade da escritura dos algarismos entre os romanos era grande, na
Idade Média a situação ficou ainda mais caótica e seria impróprio querermos
apontar um conjunto de algarismos que representasse o sistema romano-medieval:
além dos símbolos romanos, usavam letras minúsculas e vários símbolos somente
encontrados no período medieval.
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Acima, nos concentramos mais na prova das diferenças "caligráficas" entre os sistemas romano-romano e romano-medieval versus o romano-moderno. Agora, passaremos a examinar as muito mais importantes DIFERENÇAS ESTRUTURAIS entre os três sistemas romanos. Iniciaremos esse exame, comentando sobre o uso do Princípio Substrativo. O propósito desse princípio é expressar valores através da diferença entre um valor maior e um menor. Ainda hoje em dia, ele é frequentemente empregado em vários contextos, como é o caso da expressão de horas ( quando dizemos, por exemplo, são cinco para as onze ), e o caso da representação de números no sistema romano-romano ( quando escrevemos, por exemplo: IV em vez de IIII, ou XC em vez de LXXXX ). Não há a menor dúvida de que os antigos romanos também conheciam o princípio subtrativo. O emprego mais comum que faziam do mesmo era em seu calendário. Ao contrário do que fazemos, eles contavam os dias da frente para trás, usando como pontos de referência três dias especiais: as calendas, as nonas e os idos. Por exemplo, no més de março, as calendas eram o primeiro dia de março, as nonas ocorriam no dia 7 e os idos no dia 15, de modo que o dia 9 de março era denotado por VII Id., uma vez que ele era o sétimo dia antes do próximo ponto de referência que era o dia 15. Com efeito: 15, 14, 13, 12, 11, 10, 9. ( NOTA: Para uma pessoa leiga em História da Matemática parecerá que nossa conta acima está errada, e que os romanos deveriam denotar o 9 de março por VI Id, ou seja: seis dias antes dos idos. Bem, o modo de contar dos antigos romanos era diferente do nosso: em vez de fazer a subtração 15 - 9 = 6, eles enumeravam os números da lista: 15, 14, 13, 12, 11, 10, 9 ) Apesar de toda essa familiaridade com o Princípio Subtrativo, os antigos romanos raramente o empregavam fora do contexto de calendários. A tabela abaixo mostra seu procedimento normal - note que normal não significa obrigatório - em questões de numeração:
como era comum desde os antigos romanos, a inscrição contém muitas abreviações
mas é fácil ver que a mesma refere-se ao ano 1 495; note que, além de não
usar nenhum tipo de subtração, são usadas repetições de quatro algarismos,
o que hoje seria uma imperdoável violação das regras ensinadas na
escola! ( agradeço a Paul
Lewis por este exemplo )
Como ficaria a escritura de 18 e 19 no sistema romano-medieval? EXERCICIO: Em todos os meses romanos: as calendas eram o primeiro dia, as nonas eram no dia 7 dos meses longos ( os que tinham 31 dias ) e no dia 5 dos meses curtos, sendo que os idos ocorriam, respectivamente, no dia 15 ou no dia 13. Pede-se, então:
EXERCICIO: Traduza as seguintes datas para nossa maneira:
EXERCICIO: Como é bastante sabido, os antigos romanos contavam os anos ab vrbe condita, ou seja desde o ano da fundação de Roma, que ocorreu em 753 AC. Assim, pede-se:
EXERCICIO: Escreva cada data abaixo em termos de nosso calendário: RESPOSTAS: 8 de dez. de 65 AC e 23 de set. de 63 AC EXERCICIO: Verifique que os romanos que fizeram o Coliseum NÃO obedeceram o que poderíamos chamar de Regra da Preferência: "os romanos preferiam escrever IIII a IV, mas tendiam a usar XIX em vez de XVIIII".
EXERCICIO: Complementando as observações sobre relógios, é de se observar que os colecionadores, verificando a presença de IIII ou IV, tem uma idéia da antiguidade do relógio: o IIII era predominante nos relógios de ponteiro fabricados até cerca de 1 800, depois disso passou a predominar o IV. Contudo, mesmo hoje em dia, é comum vermos relógios de alto luxo trazerem o IIII; a idéia, aparentemente, é dar um aspecto "clássico" ao objeto. Por outro lado, essa insistência de os fabricantes ainda usarem o IIII, tem produzido várias tentativas de explicação para essa prática. Uma das mais plausíveis afirma que tudo teria o propósito de facilitar a construção dos moldes dos algarismos de ouro a serem usados para denotar as horas registradas pelo dial do relógio. Vejamos:
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Os antigos romanos tinham muito pouca necessidade de representar números de grande valor. Isso, aliás, é mais uma razão da importância documental da Columna Rostrata. Durante a Idade Média, a Igreja Católica iniciou a prática de enumerar os anos a partir do nascimento de Jesus Cristo, o que propiciou a oportunidade de se escrever números razoavelmente grandes. Isso, por sua vez, levou ao surgimento desordenado de várias regras para escrever numerais para grandes números. Dividiremos a história do enfrentamento deste problema em quatro períodos: o da repetição, o do vinculum, o do enquadramento e o da multiplicação. uso da repetição: foi o procedimento usado pelos antigos romanos e boa parte da Idade Média. Consistia em produzir numerais de grande valor pela repetição dos maiores algarismos. Seu uso já foi exemplificado quando tratamos da Columna Rostrata, onde os antigos romanos inscreveram o numeral 2 300 000 usando a repetição de 23 cópias do algarismo das centenas de milhares: ( ( ( I ) ) ) . A prática de se repetir um mesmo algarismo quatro ou mais vezes continuou comum até recentemente. Um desses exemplos mais recentes ainda pode ser visto na Igreja de Sant'Agnese fuori le Mura. Em seu interior temos vários numerais pintados ou inscritos, nenhum dos quais usa o Princípio Subtrativo. É especialmente interessante o forro da igreja; esse foi construído mais recentemente, no início do século XVII, sendo de madeira ricamente esculpida e no qual vemos a data 1 606 escrita como MCCCCCCVI ( agradeço a Paul Lewis por mais este exemplo ). Ainda sobre a técnica da repetição, um documento bastante rico em exemplos dos mais diversos tipos é a Aritmética de Bongo, um pedaço de página da qual foi mostrado acima. uso do vinculum: Atualmente, no sistema romano-MODERNO, chama-se de vinculum a uma barra colocada em cima de um algarismo ou parte de um numeral. O algarismo ou parte de numeral por debaixo de um vinculum fica valendo mil vezes mais, e é somado ao eventual resto do algarismo. Por exemplo: _ _ _ _ _ _ V = 5000 , X=10000 , L=50000 , C=100 000 , D=500 000 , M=1000000 _ ___ XMMCXXV = 12 125 e XIICXXV = 12 125.Quando apareceu a prática do vinculum? Bem, temos aqui outra questão historicamente delicada. O uso original que os antigos romanos faziam do vinculum, palavra que significa "algo que se coloca em cima da cabeça", era para distinguir num texto o que era numeral e o que era uma palavra. Isso era especialmente conveniente no caso de abreviações; exemplo, em IIIVIR os romanos colocavam o vinculum por cima do III para tornar claro que estavam falando de trium viri, ou seja: de três homens ou de um triunvirato. Mas, o que há de "delicado" nisso? Bem, o problema é que em livros de Plinius e Cícero, romanos que viveram no primeiro século depois de Cristo, encontra-se o uso de vinculum em sentido estritamente numérico, como
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Georges Ifrah descobriu um texto do escritor romano Suetônio, referente
à biografia do Imperador Galba, que muito bem documenta o uso romano
do vinculum e do enquadramento, bem como as confusões que isso podia provocar.
Com efeito, Suetônio conta que a mãe do Imperador Tibério
escreveu em seu testamento que deixava a seu outro filho, Galba, uma
importância que era denotada por CCCCC encimado pelo que não se podia ter
certeza se era um vinculum ou um enquadramento. Como V. deve estar
suspeitando, Tibério
questionou se devia pagar 500 x 1 000 sestércios ou os
500 x 100 000 sestércios que exigia Galba. Como a
primeira interpretação
era a favorável a Tibério, foi essa a quantia que o juiz mandou pagar a Galba
...
para denotar 100 000 000,
sendo que outros autores da época também escreviam o coeficiente multiplicador embaixo do
multiplicando.
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Não queremos alongar demasiadamente esse texto, mas não podemos deixar
de comentar alguma coisa sobre os procedimentos de cálculo dos romanos.
Conforme já observamos, o sistema de numeração romano estava intimamente relacionado com o ábaco romano. A posição e a quantidade das pedrinhas colocadas no ábaco é quem determinavam os algarismos a usar e a quantidade de repetições a fazer na representação escrita de cada número disposto no ábaco. Por outro lado, é opinião corrente entre os leigos em História da Matemática que o sistema romano era tão ineficiente que tornava quase impossível fazer multiplicações e divisões. A verdade é bem outra. Exatamente por sua dependência com o ábaco, o sistema romano permitia que um abacista fizesse multiplicações e divisões muito mais fácil e rapidamente do que hoje somos capazes de fazer.Como já dissemos, não queremos alongar mais esse texto e assim recomendo que nosso visitante estude o artigo Arithmetic with Roman numerals, de James Kennedy, no American Mathematical Monthly, de janeiro 1 981, para uma detalhada demonstração da facilidade e eficiência aritmética do sistema romano. Para terminar: o sistema indo-arábico foi introduzido na Europa cerca de 1 200 dC, e precisou de 400 anos para acabar superando o sistema romano. A longa sequência de acontecimentos envolvidos forma o que se chama de Conflito abacistas versus algoristas, e é relatado em bons textos de História da Matemática. |
P A R A A P R O F U N D A M E N T O:
Theodore Mommsen, ed.: Corpus Inscriptionum Latinarum, Berlin, desde 1 862. A G R A D E C I M E N T O S: - a Júlio Gonzalez Cabillon por algumas das referências acima - a Pyrrha's Roman House por várias informações arqueológicas - a Hilary Gowen, pelas preciosas informações sobre a cultura dos antigos romanos e sobre as guerras púnicas, em seu site: www.barca.fsnet.co.uk . - a Paul Lewis por várias informações sobre documentos contendo repetição de algarismos; visite seu muito instrutivo site sobre numeração romana: www.deadline.demon.co.uk/roman/front.htm . |
versão: abril - 2 011
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