3.- Origens do zero
( o texto que se segue ainda está imaturo, mas resolvemos publicá-lo
devido ao grande número de perguntas que nos chegam sobre tópicos aqui
abordados. Em breve, daremos uma versão bem melhorada do mesmo )
A história do zero é bastante complicada e para que não nos percamos na
imensidão de detalhes é importante ter sempre em mente que:
- se ter a noção de algarismo zero é bastante diferente de se ter a noção
de número zero; só se teverá atingido a noção de zero quando se
puder calcular com o zero
- por muito tempo as noções de vazio e nada funcionaram como um véu
impedindo que atinássemos a quantificar o nada, ou seja, que
conseguissemos atingir a noção de zero; por outro lado,
essas noções nas mãos de filósofos e místicos geraram ainda mais
confusão e paradoxos, como:
qualquer coisa é melhor do que nada; ora nada é melhor do
que Deus, logo qualquer coisa é melhor
do que Deus
- as línguas européias confundem "a presença de nada" com a "ausência de
algo", o que nos leva ao paradoxo acima; por outro lado, o sânscrito ( a
língua que falavam os antigos indianos ) tem plenas condições de expressar
claramente a diferença entre ausência de algo, ausência de tudo
e presença do nada, o que torna o texto paradoxal acima sem sentido
em sânscrito e até mesmo no hindi falado pelos modernos indianos ( agradecimentos
a Coimbatore Iswaran por essa observação )
A tabela a seguir resume os principais acontecimentos associados à
evolução do zero:
3 000 AC |
Vale do Indo ( Mohenjo Daro e Harappa ) há evidência de aparente uso
de símbolo circular indicando o valor zero em réguas graduadas.
( os documentos da Civilização do Vale do Indo tem resistido a dezenas
de tentativas de decifragem, cf. Gregory Possehl: The Indus Age, Univ.
of Pensylvania Press ) |
3 000 AC |
O olho de Horus: sistema de representação e cálculo com frações
inventado pelos egípcios e por muitos séculos usado pelos comerciantes
da região mediterrânea; envolto em misticismo, trabalhava com frações
binárias entre zero e um, sendo que um estava identificado com a pureza
absoluta e zero à impureza absoluta |
c. 2 000 AC |
O Sistema cuneiforme é inventado na Mesopotamia; apesar de ser
um sistema de numeração posicional, os mesopotâmicos de então ainda
não tinham a noção de algarismo zero |
1 000 AC |
Os olmecas ( antecessores dos mayas ) inventam um sistema de numeração
posicional, usado para marcar o tempo a partir de observações estelares, e
o mesmo incluia um algarismo zero ( Ignácio Bernal: A Compact
History of Mexico, 1974 ) |
500 AC |
Parmênides, filosofo grego, inventa o Paradoxo do Julgamento Negativo
( se uma afirmação declara que uma certa coisa existe, então sua negativa indicará
algo que não existe; ora, uma frase sobre algo que não existe é uma frase
sobre nada e então impossível ); Platon faz grande uso desse paradoxo
em seus diálogos e concluiu que é impossível existir uma grandeza nula
( cf. nos informou Luigi Borzacchini ) |
400 AC |
Os chineses deixam casa vazia, em caso de zero, em seus ábacos de mesa |
300 AC |
os mesopotâmicos passam a usar um algarismo zero medial
( como 205 e 120 1/4 no nosso sistema decimal ) em
suas tabelas astronômicas, contudo nunca usam zero inicial ou final
( como em 250 ou 0,05 no sistema decimal ), cf. nos informou a
Profa. Eleanor Robson, do
Oriental Institute, Oxford University. |
200 AC |
a palavra sünya ( pronuncia-se shunia e significa vazio, em
sânscrito ) é usada para indicar casa nula quando da
escritura de númerais no livro Chandah-sutra do matemático indiano Pingala.
Mais tarde, as casas nulas passaram a ser indicadas por um ponto, o qual
era chamado de pujyam. |
150 dC |
Ptolemaios, em seu livro Syntaxis, usa rotineiramente um algarismo zero para
representar no sistema sexagesimal os números de suas tabelas trigonométricas
e de suas tabelas astronômicas; ele usa tanto o zero medial como o zero final;
há controvérsia acerca da forma de seu algarismo
zero, pois que temos apenas cópias do livro de Ptolemaios e essas cópias
não usam o mesmo símbolo para o algarismo zero. Em particular, Otto Neugenbauer
mostrou ser pouco provável que o zero de Ptolemaios fôsse a
letra grega ômicron ( igual ao nosso "o" ), que é a letra inicial
da palavra grega oudenia ( = vazio, sem valor ), pois esse símbolo
aparece só em cópias da Syntaxis feitas no Período Bizantino |
c. 350 dC |
Os mayas produzem um artefato, o Uaxactun - Stela 18 e 19, que
é o documento mais antigo que deixaram tendo um zero; note que esse
artefato não usa o sistema posicional; o mais antigo documento maya usando
zero e o sistema posicional é o Pestac - Stela 1, datado de 665 dC,
cf. nos informou Michael Closs.
A figura ao lado, feita com material do livro de Guillermo Garces Contreras
( Pensamiento matematico y astronomico en el Mexico precolombino.
Mexico: Instituto Politecnico Nacional, 1982 )
mostra as representações mayas para o zero:
- a primeira linha mostra como eles representavam o zero quando escreviam
em livros ( códices ): usavam o desenho de uma concha ou o de um caracol, ambos
símbolos associados à morte ou ao final de um ciclo; acha-se
que o provável nome maya para o zero seria xixim, que significava
concha.
- a linha inferior mostra as representações do zero que usavam em
inscrições em monumentos, como o Uaxactun: a forma humana usando
adornos característicos
dos deuses do mundo das trevas e o desenho da flor símbolo do calendário
sagrado maya, a qual também era o emblema da eternidade e da regularidade
dos movimentos cósmicos
( os melhores agradecimentos ao professor mexicano Victor Larios
Ozorio por essas preciosas informações )
|
c. 500 dC |
Varahamihira, famoso matemático indiano, usa um pequeno círculo para
denotar o algarismo zero em seu livro Panca-siddhantika. Especula-se
que desde c. 300 dC os indianos vinham usando um ponto, o pujyam, para denotar
o zero. |
628 dC |
Brahmagupta, matemático indiano, em seu livro Brahma-sputa siddhanta,
eleva o zero à categoria dos samkhya
( ou seja, dos números ) ao dar as primeiras regras para se
calcular com o zero: um número multiplicado por zero resulta em zero; a
soma e a diferença de um número com zero resulta neste número; etc ) |
c. 850 dC |
al Khwarizmi, após ter aprendido a calcular ao estilo indiano com o
Siddhanta de Brahmagupta, escreveu um livro de aritmética chamado
( provavelmente ) Cálculo com os Numerais Indianos ( al arqan al
hindu ); esse
livro foi quem fêz a divulgação do sistema posicional decimal, e respectivas
técnicas de cálculo,
no mundo islâmico. Junto com isso veio a divulgação do zero no mundo entre os
povos de língua árabe; dos nomes sünya, pujyam e sübra, usados no
livro de Brahmagupta,
al Khwarizmi adotou o terceiro para denotar o zero e daí a evolução:
sübra -> siphra ou sifr ( árabe ) -> cifra e outras variantes
nas línguas européias -> zephirum ( pronúncia latina do sifr ) e
daí o termo moderno: zero.
( agradecimentos ao Prof Jeff Miller pela figura ao lado, referente
à comemoração dos 1 200 anos de nascimento de al-Khwarizmi )
|
c. 980 dC |
O monge Gerbert d'Aurillac ( futuro Papa Silvestre II ) viaja
pela Espanha islâmica onde aprende a calcular com o sistema indiano;
ao retornar ao Mundo Cristão, tenta popularizar essa técnica de cálculo
adaptando-a a um ábaco que utilizava pedras enumeradas, chamadas apices;
sua tentativa não teve sucesso; em verdade, Gerbert parece não ter entendido
a essência do cálculo indiano e, em particular, a importância do zero no
mesmo, pois em seu ábaco o zero era supérfluo: o ápice zero tinha o mesmo efeito
da ausência de ápice; quanto à origem do sistema usado por Gerbert:
o historiador John W. Durham acha que
os nomes usados por Gerbert para seus
algarismos
( por exemplo o zero era chamado sipos ) sugerem que seu sistema não
veio pelo caminho indianos - > árabes - > Norte da África - > Mundo Cristão mas sim via
Mesopotâmia - > Síria ( nestorianos ) - > Norte da África
- > Mundo Cristão. |
c. 1 200 dC |
Fibonacci,
que havia aprendido a calcular no sistema indiano em suas
viagens de estudo pela África islâmica, escreve seu famoso livro, o
Liber abaci, o qual junto com a tradução latina da aritmética de
al Khwarizmi foram os grandes introdutores do sistema indo-arábico no
Mundo Cristão e dois dos mais importantes livros da História da Humanidade.
Que Fibonacci ainda via o zero com desconfiança pode ser percebido pelo
modo que usava para se referir aos algarismos: novem figure indorum
( ie os nove algarismos indianos ) e o hoc signum 0... quod
arabice zephirum appelatur ( o
sinal zero ).
( agradecimentos ao Prof Kimberlin pela raríssima figura ao lado, que
é uma foto da estátua erigida pelos comerciantes de Pisa em homenagem e
agradecimento a seu ilustre
conterrâneo Fibonacci )
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c. 1 250 dC |
Sacrobosco, baseado em al-Khwarizmi e Fibonacci, escreve seu
Algorismus vulgaris o qual tornou-se o livro de matemática mais
popular nas universidades medievais e, assim, divulgou
definitivamente o sistema posicional decimal e suas técnicas de cálculo
na comunidade científica de então; a adoção desse sistema pelos comerciantes e
resto da população foi bem mais lenta, e eles continuaram a usar os
numerais romanos e o cálculo com ábacos ainda por vários séculos; assim que, para
a população era frequente ter de "traduzir" para o sistema romano números
escritos no sistema indiano: daí a origem da palavra "decifrar".
Examine na figura ao lado alguns passos da evolução dos algarismos, desde os
usados pelos indianos da época de Brahmagupta, passando pelos algarismos usados
pelos povos árabes e chegando aos algarismos que usamos no Mundo Cristão.
Lendo de baixo para cima:
- algarismos Devanagari da época de Brahmagupta
- algarismos Devanagari primitivo, anterior a Brahmagupta
- algarismos árabes de c. 800 dC
- algarismos árabes atuais
- letras árabes eventualmente usadas como algarismos
- algarismos indo-arábicos medievais
- indo-arábico atual
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