Erathostenes e a medida da Terra, c. 250 AC



As abordagens usuais desse tema, além de terem vários erros históricos e demonstrações de ignorância de princípios básicos de Geografia e Astronomia, pecam por apresentarem o tema como mero entretenimento, sem atinar que:

  • o problema da determinação do tamanho da Terra e de sua distância à Lua e ao Sol foi o primeiro a mostrar inequívocamente que a aplicação da Matemática ao mundo real passa pela disponibilidade de instrumentos precisos
  • o trabalho de Erathostenes foi um dos primeiros de uma série que durou mais de dois mil anos, sendo que a tarefa da medida da Terra chegou a ser, no século XVIII, o maior projeto científico que a Humanidade se envolvera até então
  • ao longo de boa parte desses dois mil anos, a motivação dos cientistas e matemáticos que trabalharam no problema era puramente intelectual: não tinham em vista nenhuma aplicação econômica ou militar
  • a técnica que usaram Erathostenes e outros gregos envolvia o cálculo de uma circunferência de círculo sem a utilização do respectivo raio ou diâmetro.

O leitor também precisa ser alertado que o livro onde Erathostenes descreve sua medida da Terra, o Geographiká, foi perdido (chegaram até nós apenas escassos fragmentos dos três volumes do mesmo ). Nossa fonte mais antiga e segura de informações sobre esse trabalho é o livro De motu circulari de Kleomedes, que viveu cerca de 200 anos depois. Assim, é fácil ver que existem vários pontos polêmicos na reconstrução da medida de Erathostenes, um dos quais é a crucial determinação do valor da unidade de comprimento ( o estádio ) por ele usada.



A primeira idéia para medir a Terra: o método do meridiano

Logo que os gregos atinaram que a Terra tinha a forma esférica, puseram-se a imaginar artifícios para determinar o tamanho dessa esfera.
Nesse sentido, a primeira idéia que surgiu foi a de reduzir o problema da determinação do tamanho da Terra a um problema de geometria plana. A estratégia mais simples de se obter tal redução era a de se fazer medidas em um mesmo meridiano, o que explicaremos em detalhe abaixo.

  • O que é um meridiano?
    Supondo a Terra seja uma esfera perfeita, os meridianos terrestres são os círculos centrados no centro da Terra e passando pelos dois pólos.
    O prolongamento desses círculos até a esfera celeste dá os chamados meridianos celestes.


    O meridiano terrestre que passa por um dado local sobre a superfície da Terra, e o correspondente meridiano celeste, são chamados de meridianos do local.

  • Utilidade do meridiano celeste de um dado local:
    • ele contém o zênite do local ( = ponto onde a vertical do local "fura" a esfera celeste )
    • em sua viagem diária pela esfera celeste, o Sol atinge sua posição mais alta ( = projeta sua menor sombra ) no tal local quando cruza o respectivo meridiano celeste.

  • Como podemos achar o meridiano de um dado local sobre a superfície da Terra?
    Se cravarmos verticalmente uma vareta no chão, a direção da sombra mínima produzida por essa vareta ao longo de um dia é a direção do meridiano local.

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Algumas peculiaridades gregas:



  • Os gregos expressavam o tamanho da Terra dando o valor da circunferência dos meridianos terrestres e não em termos do raio ou diâmetro da Terra. A razão era simples: podemos calcular a circunferência usando raciocínio de proporções (detalhes adiante ), enquanto que a determinação do raio ou diâmetro, a partir da circunferência, envolve o conhecimento do valor numérico de PI, com várias casas decimais.

  • É só com Hipparchos c. 200AC que os gregos adotam a tradição mesopotâmica de expressar a medida dos ângulos em termos de graus, minutos e segundos, como costumamos hoje fazer. Erathostenes, e os gregos mais antigos que ele, expressava a medida dos ângulos em termos de 1 / 60 do giro completo.
    as medidas de comprimento eram expressas em termos de estádios ( stadion, em grego ). Infelizmente, na época não havia grande preocupação com padronizações, de modo que o estádio variava de cidade para cidade. No que segue, usaremos o estádio usado por Erathostenes. Esse, segundo conta Plinius em sua Historia Natural, tomava o estádio como sendo 1 / 40 do schoinos egípcio, e como sabemos que um schoinos dava 12 000 covados reais egípcios e que nos atuais museus podemos ver que esse covado equivale a 0.525 metros, segue que o estádio de Erathostenes valia 157.5 metros. Nem todos especialistas aceitam esse valor.

  • se os gregos tivessem nossa capacidade de medida atual, eles dariam o valor da circunferência dos meridianos terrestres como sendo C = 253 600 estádios

  • Os gregos usualmente mediam ângulos através do comprimento da sombra produzida por uma vareta ( chamada gnomon, ou indicador ) cravada verticalmente no chão. Como isso dava resultados pouco exatos, o matemático Aristarchos c. 280 AC inventou um outro instrumento, chamado skaphe, que mais tarde foi usado por seu aluno Erathostenes, confrome descreveremos abaixo.
    Já a medida da distância entre cidades ( a rigor, do comprimento do arco de círculo unindo as duas cidades ) usualmente era feita grosseiramente, a partir do tempo que gastava uma caravana de comerciantes para ir de uma à outra cidade. Contudo, Erathostenes pode usar medidas mais exatas: as obtidas pelos bematistai, que eram funcionários públicos criados por Alexandre Magno e cuja função era medir em passadas a distância entre as principais cidades do mundo grego.

A primeira implementação do método do meridiano

Baseava-se na determinação do ângulo que representa a diferença entre as alturas de uma mesma estrela em duas cidades num mesmo meridiano. Como V. deve imaginar, a altura de uma estrela relativamente a um ponto P sobre a superfície terrestre é a medida do ângulo que faz o "raio visual de P à estrela" com o plano do horizonte em P.
Deixaremos para os exercícios o exame dos detalhes desta implementação. Aqui, só observaremos que os resultado mais antigos que conhecemos do uso desta técnica são relatados por Aristóteles c. 350AC, o qual dava, sem citar o autor da medida: C = 40 000 estádios. Cerca de cem anos mais tarde, Archimedes, em seu famoso livro Arenario, menciona um valor muito mais exato: C = 300 000 stadia.
A diferença entre esses resultados é imensa e serve como condenação da praticidade dessa técnica. Além da precariedade instrumental dos gregos, tinha-se de acrescentar vários fenômenos físicos ( como a refração atmosférica ) prejudicando a determinação da altura das estrelas.

A segunda implementação do método do meridiano: Erathostenes c. 250 AC

Erathostenes descobriu um modo alternativo de achar um ângulo na esfera terrestre, envolvendo medidas outras que alturas de estrelas.
Sua idéia fundamentava-se em aproveitar que num certo dia do ano ( precisamente: ao meio-dia do solstício de verão ) as colunas e obeliscos na cidade egípcia de Aswan ( na época, chamada Syena ) não faziam sombra, o que era ainda mais notado pelo fato de que os poços da cidade espelhavam o Sol nesta hora e dia. Consequentemente, naquele instante, o raio da Terra que passava por Aswan tinha a direção dos raios luminosos do Sol ( muito aproximadamente paralelos dada a enorme distância entre a Terra e o Sol ). Daí, para achar a circunferência C do meridiano terrestre de Aswan, tudo o que lhe restava fazer era:

  • achar outra cidade no meridiano de Aswan
    ( os mapas da época mostravam que uma tal cidade era Alexandria )
  • medir o ângulo S da sombra projetada por um obelisco ( ou coluna ) em Alexandria e ao meio-dia do solstício de verão
  • medir a distância entre Aswan e Alexandria
Acompanhe o raciocínio na figura abaixo:
o paralelismo dos raios solares dá S = A e também A = B , disso segue que B = S

Ora, usando uma skaphe, Erathostenes verificou que o ângulo S da sombra era 1/ 25 da skaphe. Essa skaphe tinha a forma de metade de uma esfera, de modo que concluiu facilmente que:

S = 1 / 25 da skaphe = 1 / 50 do giro completo


consequentemente, o arco de meridiano entre Aswan e Alexandria ( ou seja: a distância entre essas cidades ) é 1 / 50 da circunferência do meridiano. Mas essa distância era sabida ser 5 000 estádios, de modo que

a circunferência do meridiano terrestre vale C = 50 x 5 000 = 250 000 estádios.


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Erros e simplificações de Erathostenes

  • Erros de Erathostenes:

    1. a distância entre Alexandria e Aswan é de 4 628 estádios e não 5 000 estádios
    2. se olharmos qualquer mapa moderno, veremos que flagrantemente essas duas cidades NAO estão num mesmo meridiano; elas diferem em mais de 3 graus de longitude
    3. traduzindo em graus a medida de Erathostenes para o ângulo entre os raios por Alexandria e Aswan, obtemos:

      S = 1 / 50 de 360 graus = 360 / 50 graus = 7 graus 12 min.

      Contudo, medidas modernas dão o valor S = 7 graus e 5 min.

  • Simplificações de Erathostenes:

    Como também ainda hoje costumamos fazer, no lugar da circunferência do meridiano, Erathostenes preferia trabalhar com o comprimento de um grau de meridiano, ou seja: com a 360a parte do meridiano. Isso daria um grau = 250 000 / 360 = 694.4 estádios, mas ele - talvez plenamente ciente da imperfeição de suas medidas - preferiu usar o muito mais cómodo um grau = 700 estádios


Algumas sugestões de atividades de aula, baseadas no método do meridiano

Exercício:
Tamanho da Terra pela técnica da altura estelar.
Consiste em seguir a receita abaixo, que pede-se mostrar que realmente dá o tamanho da Terra:

  • acha-se duas cidades, A e B, que estejam num mesmo meridiano
    ( EXEMPLO: os gregos sabiam que Alexandria e Aswan ( na época era chamada Syena ) estavam num mesmo meridiano )
  • mede-se a distância s entre A e B
    ( a rigor, mede-se o comprimento do arco terrestre que vai de A para B )
  • escolhe-se uma estrela X, visível desde A e B, e mede-se a altura de X em A e a altura de X em B; a seguir, acha-se o ângulo Ø que representa, em graus, a diferença entre essas duas alturas
  • finalmente, usando a proporcionalidade entre comprimento de arco e medida do ângulo correspondente, temos que C / s = 360 / Ø e daí resta obter o valor da circunferência C da Terra.

Exercício ( de Dennis P. Donovan ):
Os alunos de duas escolas trocsm informações ( por exemplo, por e-mail ) e implementam a seguinte variante da técnica de Erathostenes:

  • Os alunos de uma escola contactam uma outra escola que diste no mínimo algumas centenas de Km e que esteja no mesmo meridiano de sua cidade
  • os alunos de cada escola cravam verticalmente uma vareta no chão e, num mesmo instante de um dia ensolarado e combinado de antemão, medem o ângulo das respectivas sombras
  • usando essas medidas e mais a distância entre as escolas ( obtida, por exemplo, via mapa) eles calculam a circunferência do meridiano.
  • os alunos das duas escolas comparam seus resultados

Rápida visão dos estudos modernos da forma e tamanho da Terra

Em 1686, Newton mostrou matematicamente que a Terra não era uma esfera pois tinha um achatamento nos pólos. Isso teve grande resistência pela comunidade científica e resultou na criação de sucessivas comissões de cientistas franceses que tinham como finalidade medir mais cuidadosamente o meridiano e assim decidir a veracidade do resultado de Newton. Dessas comissões francesas, as mais famosas foram a que mediu o meridiano no Peru ( entre 1735 e 1745 ) e a que o mediu na Lapônia: ambas confirmaram Newton. Uma consequência importante desse trabalho foi a introdução do metro em 1791, definido como a 10 000 000 parte do quadrante do meridiano de Paris. Cientistas e matemáticos de outros países continuaram a desenvolver técnicas com vistas a medidas cada vez mais precisas do meridiano, um trabalho que continuou pelo século passado e atual e envolveu matemáticos de renome como Legendre, Laplace, Gauss, etc.
Podemos resumir esse gigantesco esforço da Humanidade dizendo que hoje sabemos que a Terra não é uma esfera perfeita, tendo um achatamento nos pólos. Esse achatamento é pequeno, correspondendo a um desvio de 0.3% da forma esférica. Com efeito, temos:
  • circunferência polar = circunferência do meridiano = 39 942 Km
    diâmetro polar = 12 714 Km
  • circunferência equatorial = 40 074 Km
    diâmetro equatorial = 12 756 Km

Em trabalhos científicos mais precisos, bem como em algumas aplicações como lançamento de mísseis intercontinentais e satélites, toma-se como modelo da figura Terra um esferóide ( = elipsóide de revolução ) achatado cujos parâmetros ( valor dos semi-eixos, etc ) são periodicamente melhorados pela International Union of Geodesy and Geophysics.
Em trabalhos ainda mais delicados, e que tem de levar em conta a influência da gravidade terrestre e lunar ( efeito no nível dos oceanos! ), usa-se um modelo ainda mais sofistificado: o geóide.


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versão: 20-abril-2 000
local desta página: http://athena.mat.ufrgs.br/~portosil/histo2.html
© J. F. Porto da Silveira
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