O triângulo de Pascal é de Pascal?
Qualquer pessoa que tenha um pouco de leitura e bom senso deve no mínimo estar suspeitando que o triângulo aritmético não seja uma descoberta ou invenção de Pascal. Por exemplo: a denominação desse triângulo varia muito ao longo do mundo. Com efeito, se bem que os franceses o chamem de triângulo de Pascal, os chineses o chamam de triângulo de Yang Hui, os italianos o chamam de triângulo de Tartaglia e encontramos outras denominações como triângulo de Tartaglia-Pascal ou simplesmente triângulo aritmético ou triângulo combinatório. |
é um quadro de forma triangular onde são dispostos, sucessivamente e de cima para baixo, os coeficientes das expansões de:o resultado é um quadro triangular, que se prolonga indefinidamente para baixo e cujas primeiras linhas sao mostradas na figura ao lado.(a+b)0 Como é fácil se perceber, as REGRAS de construção do quadro são: Embora não seja este o objetivo desta matéria, observemos que são várias as UTILIDADES do triângulo aritmético:
|
A matemática indiana iniciou em cerca de 3 000 AC, na região de Harappa e Mohenjodaro. Era uma matemática bem rudimentar e foi somente com a introdução da religião védica, que acompanhou a invasão ariana c. 1 500 AC, é que passamos a encontrar a resolução de problemas não triviais. A matemática védica era basicamente geométrica, toda voltada para os complicados rituais de construção dos altares para suas cerimonias religiosas. Cerca de 600 AC, com o esgotamente do vedismo na India, difundiram-se duas outras concepçôes religiosas, o budismo e o jainismo, ambas protestantes dos sacrificíos cruentos dos rituais védicos. A palavra jaina vem de jin, vitorioso em sânscrito, e indica aqueles que obtiveram vitória sobre os desejos mundanos e que tem os sentidos totalmente sob o controle da vontade. Para atingir essa perfeição, os jainas passavam por um longo treinamento, sendo que o estudo da Ganitanuyoga, ou Matemática, era considerado como um dos exercícios mais nobres e eficazes do mesmo. Entre os vários temas matemáticos estudados pelos jainas estava a Vikalpa, ou Combinatória. A razão maior da grande atenção que deram à Combinatória era sua concepção atomística do mundo físico. Seu átomo, que chamavam de parmanu, era uma partícula indivisível, atemporal, e tal que apenas sua cor, gosto, cheiro e tactibilidade podiam mudar. Com efeito, seus átomos tinham 5 tipos de cor, 8 tipos de tactibilidade, 5 gostos possíveis e 2 cheiros distintos. Boa parte de sua combinatória envolvia problemas de cálculo das combinações das qualidades dos átomos. Como todo corpo vivo ou físico era composto de átomos, com o passar dos anos, também dedicaram-se a calcular combinações das qualidades de praticamente tudo o que existe de material e até mesmo no mundo das idéias e do espírito:
Os livros indianos eram escritos em folhas de palmeira o que fêz com que poucos deles chegassem aos nossos dias. Para a maioria dos mais antigos livros jainas, temos apenas o nome do livro, raramente o do autor, e poucas informações matemáticas. Ademais, muitos deles não foram escritos em sânscrito. Tudo isso fêz com que ainda sejam muito poucos os estudos sobre a história da matemática jaina. A tabela abaixo, dá um resumo bem rudimentar, mas significativo, da literatura jaina associada à Combinatória e ao triângulo aritmético:
Para construir o triângulo, Pingala descreve a seguinte regra: Desenhe um quadradinho; abaixo dele desenhe dois outros, de modo que juntem-se no ponto médio da base dele; abaixo desses dois, desenhe outros três e assim por diante. A seguir, escreva 1 no primeiro quadradinho e nos da segunda linha. Na terceira linha escreva 1 nos quadradinhos dos extremos, e no do meio escreva a soma dos numeros acima dele. Prossiga fazendo o mesmo nas demais linhas.Nessas linhas, a segunda dá as combinações com uma sílaba; a terceira dá as combinações com duas sílabas e assim por diante.Muitos séculos depois de Pingala, no livro de Halayudha ainda encontramos o meruprastara e a regra de Pingala. |
China: 1 700 anos antes de Pascal
O uso que os antigos chineses faziam do triângulo aritmético centrava-se no cálculo aproximado de raízes quadradas, cúbicas e etc.
|
A reconstrução do início do envolvimento dos matemáticos de religião
islâmica com o triângulo aritmético é difícil pois que os principais
documentos associados perderam-se na noite dos tempos. Contudo é razoavelmente
garantido podermos afirmar que, a maioria dos
islamitas aprenderam o triângulo aritmético através de compilações
escritas em árabe de livros indianos, como é o caso do
Princípios do Cálculo Hindu, escrito por al Jili c. 1 000 dC, e
o Coisas suficientes para entender o Cálculo Hindu, por
al Nasawi, também em c. 1 000 dC.
Por outro lado, segundo os grandes especialistas em história da matemática islâmita, Roshdi Rashed e Adel Anbouba, o triângulo teria sido redescoberto em 1 007 pelo matemático al Karaji. Esse matemático teria utilizado o triângulo para obter o desenvolvimento de potências quadrática, cúbica e quártica de binómios em seus tratados de álgebra: o al Fakhri e o al Badi. Cerca de 1 975, os historiadores russos M. A. Abarova e B. A. Rosenfeld estudaram cuidadosamente essas referências e, parece-nos, concluiram que al-Karaji ensinava a calcular ( a + b ) n mas não fazia nenhuma menção do triângulo aritmético: sua técnica seria uma mera elaboração dos métodos de álgebra-geométrica que remontam a Euclides e outros gregos clássicos. O próximo matemático islamita que envolveu-se com o triângulo aritmético foi o muito famoso poeta e matemático persa Umar al-Khayyami c. 1 150 dC. Em seu Tratado de demonstrações de problemas de Álgebra e Almuqabala, ele diz que escrevera um livro - hoje, totalmente perdido - sobre o triângulo aritmético e sua aplicação na extração aproximada de raízes quadradas, cúbicas, etc, seguindo a tradição indiana. É de se insistir que a extração aproximada de raízes continuou a ser por vários séculos, entre os islamitas, o grande uso do triângulo aritmético. Mas deixemos que o grande al-Khayyami nos diga o que fêz: os indianos tinham métodos para calcular os lados de quadrados e cubos, ...... Eu escrevi um livro que prova a correção desses métodos, e mostrei que eles realmente chegam à conclusão desejada. Eu também estendi o método para o caso das raízes quarta, quinta e etc, o que não havia sido feito antes. As demonstrações que dei disso são estritamente aritméticas, baseadas nos ensinamentos dos Elementos de Euclides. Na época de al Khayyami, viveu em Baghdad um outro matemático islamita que teve grande envlvimento com o triângulo aritmético, trata-se de al Samaw'al. Aos 19 anos de idade esse talentoso matemático escreveu um tratado de álgebra, o al Bahir fi'l jabr ( A deslumbrante Álgebra ) , onde corrigiu e expandiu o trabalho de al Karaji sobre o triângulo e o binômio de Newton; seu livro traz uma ricamente decorada figura de um triângulo aritmético de 12 linhas. Entre os notáveis resultados de al Samaw'al, neste livro, está uma demonstração por indução matemática da validade do binômio de Newton. Nos séculos seguintes, a matemática islamita espalhou-se pelo Norte da Africa. Os maghrebinos tiveram um enorme interesse em problemas de Combinatória, tendo assim um fértil campo de aplicações para o triângulo. Foi a partir daí que a Combinatória chegou até a Europa Medieval, através de divulgadores viajantes como Fibonacci. Esse, incidentalmente, sofreu grande influência de al Samaw'al.
|
No século que antecedeu Pascal, mais de uma dezena de matemáticos europeus trabalharam
com o triângulo aritmético. O mais antigo deles parece ter sido o matemático alemão Apianus. Esse, em 1 527, publicou um livro - de título: Rechnung, ou seja: Cálculo - cuja capa trazia um desenho do triângulo aritmético. Mas o alemão que mais divulgou o triângulo foi Stifel, principalmente através da sua muito importante e influente Arithmetica Integra, 1 544. Segundo o historiador Kurt Vogel, Stifel declarou que havia " descoberto os coeficientes com grande dificuldade, nisso nao tendo sido ensinado por ninguém e não tendo podido ter a ajuda de nenhum livro ". Um pouco depois dos alemâes, alguns matemáticos italianos redescobriram o triângulo. O principal deles foi Tartaglia o qual lhe dedicou muitas páginas de seu enorme livro General Tratato di numeri et misure, 1 556. Embora, hoje pouco conhecido pelos historiadores, esse livro foi o melhor, mais completo e maior tratado de aritmética até então escrito. Segundo Gino Loria, equivaleria a cerca de 4 000 páginas impressas em tipo moderno. Após Tartaglia, vários outros italianos dedicaram-se ao tema, como os importantes Cardan e Bombelli. Entre os franceses que antecederam Pascal, podemos encontrar vários que conheciam o triângulo aritmético. Deles, o que mais divulgou o triângulo foi Peletier, através de sua Arithmétique, livro de enorme sucesso na época e que teve várias edições, a primeira em 1 549. Também devemos mencionar: Girard (1629), Mersenne (1636), etc.
|
Em 1 654, um famoso jogador profissional, Antoine Gombauld,
pomposamente autodenomidado o Cavaleiro de Méré, escreveu uma carta ao
famoso matemático francês Blaise Pascal, propondo-lhe resolver alguns
problemas matemáticos que tinha encontrado em suas lides com jogos de azar.
Entre os problemas propostos por de Méré estava o seguinte: Jogando com um par de dados honestos, quantos lances são necessários para que tenhamos uma chance favorável ( ou seja, de mais de 50% ) de obtermos um duplo-seis, ao menos uma vez?O interesse de de Méré no problema residia no fato de que sua "solução" para o mesmo não funcionava na prática, produzindo-lhe constantes prejuízos. Com efeito, ele não conseguia ver o que estava errado em seu raciocínio: " Quando jogamos apenas um dado, temos chance 1/6 de obter um seis, e como 3 x 1/6 = 50% e 4 x 1/6 = 67%, vemos que precisamos jogá-lo 4 vezes para ter chance maior do que 50% de obtermos, ao menos uma vez, um seis. Ora, quando jogamos um par de dados temos 36 possibilidades, ou seja 6 vezes mais possibilidades de quando jogamos um único dado, consequentemente, precisaremos jogar o par de dados 6 x 4 = 24 vezes para ter chance maior do que 50% de obtermos, ao menos uma vez, um duplo seis". Pascal percebeu o erro de de Méré e se dispôs a achar a solução correta. Trocando idéias com o grande matemático Fermat, logo se convenceu que a resolução teria de passar pela enumeração combinatorial das possibilidades de ocorrência do duplo-seis. Procurando uma maneira inteligente de fazer essa trabalhosa enumeração, Pascal redescobriu e aperfeiçou uma interpretação combinatória e probabilística do triângulo aritmético, a mesma que Tartaglia já havia descoberto e estudado. Dessa maneira, conseguiu mostrar que:
Pascal não ficou sómente na resolução desse e outros problemas de de Méré. Com efeito, gastou um ano escrevendo uma monografia de cerca de sessenta páginas sobre o triângulo aritmético: Traité du triangle arithmétique, a qual foi publicada só postumamente, em 1 665. Nessa monografia, Pascal introduziu o triângulo de um modo bem complicado e usando uma notação estritamente geométrica - bem ao estilo clássico, anterior a Viète e Descartes - provou algumas identidades envolvendo os coeficientes binomiais e aplicou o triângulo na resolução de pequenos problemas de probabilidades e de combinatória. Quase cem anos depois, em 1 739, o matemático inglês de Moivre publicou trabalho em que usou a denominação TRIANGULUM ARITHMETICUM PASCALIANUM para o triângulo aritmético. Dada a repercussão que esse trabalho teve na época, isso acabou tornando consagrada a denominação "triângulo de Pascal" na Inglaterra, França e mais alguns países europeus. |
AWF Edwards: Pascal's Arithmetic Triangle, London: Charles Griffin & New York: Oxford Univ. Press, 1987. David Fowler: The Binomial Coefficient Function, Amer Math Monthly 103 (1996)1-17. N. L. Biggs: The roots of combinatorics. Historia Math. 6(1979), no.2,109-136. |
versão: 23 - fev - 2 001
localize esta página em: http://athena.mat.ufrgs.br/~portosil/histo2.html
© 2 001 por J.F. Porto da Silveira ( portosil@mat.ufrgs.br )
permitida a reprodução, desde que com fins acadêmicos e não comerciais