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CORRELAÇÃO
DO LÓGICO E DO HISTÓRICO NO ENSINO DOS NÚMEROS REAIS
Marisa da Silva Dias
diasma@usp.br
Faculdade de Educação – USP
Antonio Sérgio Cobianchi
cobi@debas.faenquil.br
Faenquil-Lorena
RESUMO
Este texto compõe elementos das pesquisas de doutoramento e pós-doutoramento
em Educação que estão sendo realizadas pelos autores.
Partindo das concepções de professores em relação
à didática e ao conceito de números reais, buscamos
desencadear uma discussão de sua prática em sala de aula.
Essa discussão pretende colaborar para uma proposta de ensino na
construção do conjunto dos números reais que permita
dar significado a existência do mesmo. O objetivo é aproximar
os elementos históricos que favoreçam a compreensão
da evolução dos conceitos para possibilitar o estudo no
movimento do pensamento na apreensão do objeto, também em
situações de ensino e aprendizagem. A proposta está
inserida na colocação do problema da correlação
entre o lógico e o histórico no desenvolvimento do conhecimento
e do ensino de números reais.
INTRODUÇÃO
Números reais e continuidade, tema presente nos
sistemas de ensino fundamental, médio e superior, ainda não
é uma questão resolvida no ensino, apesar da existência
de alguns trabalhos em Educação Matemática que tratam
desse importante conteúdo da Matemática. Quase todas as
pesquisas existentes sobre esse assunto levantam problemas em relação
ao ensino e à aprendizagem de números reais em todos os
níveis de ensino. Algumas delas, como as de Cobianchi e Dias, sugerem
alguns elementos que poderiam ser levados em consideração
para uma proposta de ensino desse conjunto numérico.
As pesquisas de Cobianchi e Dias procuraram verificar como o assunto números
reais é tratado por professores. Esse texto está baseado
em alguns dos resultados dessas duas pesquisas e discute uma proposta
de ensino desse conceito.
CONCEPÇÕES SOBRE O ENSINO E APRENDIZAGEM
DO CONJUNTO DOS NÚMEROS REAIS
A importância desse conceito
As concepções dos professores sobre a importância
do conhecimento dos números reais e de seu ensino, em Cobianchi
(2001), revelam uma preocupação com a apreensão desse
conteúdo. Muitas delas consideram essa questão como fundamental
para o ensino da Matemática, embora em nenhuma resposta dada apareça
uma interpretação no que consiste essa importância
para seu ensino e aprendizagem. Por outro lado, observa-se que uma parcela
desconhece a importância em se ensinar e, logicamente, em aprender
números reais.
Nos comentários dos entrevistados encontramos afirmações
que designam, ao conjunto dos números reais, uma característica
soberana em relação aos outros conjuntos. As justificativas
concentram-se na direção de que esse assunto é muito
importante para entender o mundo que nos cerca.
Algumas justificativas dessa importância foram relatadas como sendo
uma decorrência natural para a ampliação dos conjuntos
numéricos e um suporte para entendimento e aplicação
em outros conceitos da Matemática. A concepção de
um conjunto amplo e que comporta “todas as soluções
de quaisquer problemas” também apareceu na pesquisa de Dias
(2002).
Outros depoimentos revelaram que a aprendizagem desse conteúdo
permite uma compreensão da lógica e do desenvolvimento de
raciocínio. Semelhantes a essa concepção, certos
depoimentos ressaltaram que, com o aprendizado desse conjunto, o universo
dos alunos passa por um processo de enriquecimento: “você
sai de um mundo até então limitado para um conhecimento
infinitamente rico” (COBIANCHI, 2001, p. 300).
Outros ainda destacaram que os números reais foram criados por
uma necessidade, mas não dizem no que consiste tal necessidade.
O ensino
A grande maioria dos professores entrevistados em Cobianchi
(2001) e em Dias (2002) introduz didaticamente a definição
do conjunto dos números reais da mesma maneira, a união
dos conjuntos dos números racionais com os dos irracionais, ou
uma variação dessa, como a união dos naturais, inteiros,
racionais e irracionais. Os irracionais, por sua vez, são definidos
pela impossibilidade de representação desse número
como uma fração de inteiros.
Esta maneira de exposição é motivada pela lacuna
existente em cursos de licenciatura com relação a esse tema,
e pela maneira que os livros didáticos o abordam.
Essa particularidade no tratamento didático dos conjuntos de números
reais e de números irracionais revela concepções
que se mostraram insuficientes em certas situações apresentadas
em Dias (2002), tanto operacional como conceitualmente.
Os professores entrevistados em Dias e em Cobianchi ao refletirem sobre
questões envolvendo propriedades dos números reais expuseram
dificuldades em relação à ordem, à densidade,
ao infinito, às definições de número racional
e de número irracional, e, ao próprio conceito de número
e suas representações. Convém observar que noções
de ordem, densidade, continuidade fazem parte de um elenco de conceitos
que deveriam ser discutidos quando se pretende ensinar esse conjunto numérico.
Cabe destacar também que Richard Dedekind, um dos formalizadores
da teoria dos números reais, necessitou usar esses conceitos na
sua construção.
A preocupação de refletir no ensino concepções
não adequadas com o conceito de números reais, também
destacada pelo professor em Dias (2002), reforça a necessidade
de estudos para a construção de procedimentos pedagógicos
em relação a esse conceito. Essa também é
nossa preocupação, principalmente por que se pôde
observar, em Dias (2002), a semelhança de concepções
dos professores com as de estudantes encontradas nas pesquisas consultadas.
Algumas concepções
Para orientar nossa discussão, apresentamos alguns métodos
expostos pelos professores, entrevistados em Cobianchi (2001) e Dias (2002),
sobre o ensino dos números reais, bem como concepções
dos mesmos.
Como dissemos anteriormente, o objetivo didático é chegar
na definição dos números reais como união
dos conjuntos dos números racionais com dos irracionais. Para isso
todos os métodos caminham na direção de explicar
a existência dos irracionais.
Um procedimento didático é a utilização de
material concreto. Esses recursos procuram explicar a existência
de alguns números irracionais que, juntamente com os racionais,
irão formar o conjunto dos números reais. Alguns exemplos
apresentados foram: a medição com barbante de objetos redondos
para “descoberta do número ?”, a utilização
da escala da régua, explicando que entre um decímetro há
dez centímetros e entre um centímetro, dez milímetros,
procurando associar com a reta aritmética e, o uso da calculadora
principalmente para obter a raiz quadrada de um número.
Observamos que a utilização da calculadora ou o uso de medições
empíricas pode levar a uma identificação de números
distintos pela igualdade de um número com uma aproximação
deste (DIAS, 2002). Medições empíricas também
podem formar a concepção de que o número irracional
é o resultado de uma medida.
A representação decimal infinita do número irracional,
embora seja muito usada para introduzir o número irracional, pela
impossibilidade de representá-lo na forma de fração
de inteiros, não é muito explorada após esse momento
inicial. No ensino fundamental e médio podemos observar que prevalece
o uso das raízes, seja nos cálculos que envolvem o Teorema
de Pitágoras, a relação lado e área de quadrado,
ou as equações quadráticas de um modo geral.
Essas abordagens estão mais direcionadas a uma operacionalidade
e aplicabilidade dos irracionais. Os métodos apoiados nessas abordagens
podem levar a formação da concepção, como
mencionada anteriormente, de que o conjunto dos números reais comporta
a solução de todos os problemas.
Pudemos observar imagens conceituais (DIAS, 2002) desse conjunto como
sendo de uma “reta racional” por vezes discreta. Também
em Cobianchi (2001), percebe-se, a partir dos depoimentos dos professores,
que “os alunos sabem distinguir números, mas não pensam
em continuidade, pensam apenas em grandezas discretas” (p. 428).
A operacionalidade muitas vezes está ligada a uma abstração
de situações empíricas desvinculados de um pensamento
teórico.
Há concepções que refletem a não distinção
entre densidade e continuidade (DIAS, 2002 e COBIANCHI, 2001) e, talvez
por esse motivo, a densidade seja, para alguns, concebida somente para
o conjunto dos números reais.
A concepção do conjunto dos números reais acaba por
ser formada como um “amontado de numerais”. O significado
dos números, a formação dos conjuntos e suas propriedades
não são discutidos de forma a proporcionar uma compreensão
de sua existência.
UMA DISCUSSÃO
A importância do estudo do conceito de números
reais foi revelada por professores do ensino fundamental, médio
e superior. E, ainda, pudemos observar a dificuldade de tratamento no
ensino desse conceito. Os professores entrevistados em Cobianchi e em
Dias revelam suas dificuldades na abordagem conceitual e didática
desse assunto.
Nossa discussão pretende colaborar para uma proposta de ensino
e aprendizagem sobre a construção do conjunto dos números
reais, que permita dar significado a existência do mesmo. Para isso,
buscamos uma aproximação com os elementos históricos
que permitam compreender a evolução dos conceitos, com o
objetivo de interagir com propostas didáticas para o ensino desse
conjunto numérico. Com os fundamentos históricos, almejamos
proporcionar relações sobre a prática do ensino do
conjunto dos números reais, e a lógica de sua construção.
Nesse sentido, procuramos estudar o desenvolvimento histórico do
conceito de número irracional.
A proposta está inserida na perspectiva lógico-histórica
(KOPNIN, 1978) que tem por pressuposto a possibilidade do estudo no movimento
do pensamento no sentido da apreensão do objeto. Para Kopnin, o
histórico é entendido no seu processo de mudança,
etapas de seu surgimento e desenvolvimento e, o lógico como meio
pelo qual o pensamento realiza a reprodução do processo
histórico. Processo este não no sentido de guiar o pensamento
impondo-lhe o desenvolvimento histórico, mas permitindo que a formação
das idéias componha a lógica do movimento do pensamento.
A importância do estudo da história dos números reais
será necessária para podermos acompanhar o movimento do
pensamento no desenvolvimento desse conceito, sua essência, sua
necessidade na evolução humana.
Tópicos históricos
A evolução dos conceitos que levaram ao estabelecimento
formal do conjunto dos números reais passa, necessariamente, pelos
processos envolvendo o desenvolvimento da noção de continuidade.
A idéia de continuidade foi justificada de diferentes maneiras,
desde a Grécia Antiga, até o final do século XIX.
Selecionamos quatro dessas justificativas utilizadas por Cobianchi (2001),
que julgamos das mais representativas de cada período da História,
em que a noção de continuidade passou por transformações.
De maneira geral as obras analisadas por Cobianchi podem sugerir elementos
para serem incorporados aos procedimentos de ensino de números
reais. Entre eles, os conceitos de infinidade, ordenação,
densidade, enumerabilidade e continuidade.
Consideramos que a construção de Dedekind reúne conceitos
na sua “forma mais madura” (KOPNIN, 1978, p. 185) que é
a convergência de todas essas noções, e, portanto,
propícia para o início de um estudo que pretende “reproduzir”
a lógica da sua história.
A construção dos números reais, feita por Richard
Dedekind (1831-1916), divulgada em 1872, tomou por ponto de partida o
domínio dos números racionais. Ao invés de identificar
o número real como uma seqüência convergente de racionais
como era comum em alguns de seus antecessores, ele encarava o número
real como se esse fosse gerado pelo poder da mente em classificar os números
racionais. Esse esquema de classificação, chamado de corte,
partição, separação, ou seção
de Dedekind, afirma que:
“Se todos os pontos de uma reta estão em duas classes tal
que todo ponto da primeira classe encontra-se à esquerda de todo
ponto da segunda classe, então existe um e somente um ponto que
produz esta divisão”.
O que de outra forma seria:
“Se o sistema de todos os números reais é separado
em duas classes e tal que todo número em é menor que todo
número em , então existe um e somente um número real
pelo qual esta separação é produzida”. (DEDEKIND,
1963, p.20).
Por que será que Dedekind estava se empenhando em definir números
reais?
Sabemos que essa preocupação possui seus fundamentos na
história. Podemos observar a crise da Escola Pitagórica
proporcionada pelo surgimento do incomensurável, seguida do avanço
ocasionado pelo axioma da exaustão, contribuição
de Eudoxo. Esse axioma, posteriormente desenvolvido e usado por Arquimedes
(287-212 a.C), afirma que: “Dadas duas grandezas desiguais de mesma
espécie, se da maior se tira uma grandeza maior que sua metade
e da que resta, outra grandeza maior que sua metade e se repete esse processo,
restará uma grandeza menor que a menor das grandezas dadas”.
O conceito de continuidade também foi desenvolvido por Boaventura
Cavalieri (1597-1647), através dos indivisíveis. Cavalieri,
discípulo de Galileu, desenvolveu as idéias sobre os indivisíveis
para métodos geométricos e publicou o seu tratado “Geometria
Indivisilibus” em 1635. Com esse trabalho ele transformou o uso
da reta e de superfícies “indivisíveis” em um
conjunto poderoso de técnicas para comparar áreas e volumes.
Em linguagem moderna, seus indivisíveis seriam:
“Um indivisível de uma porção plana dada é
uma corda dessa porção e um indivisível de um sólido
dado é uma secção desse sólido. Uma área
pode ser pensada como sendo formada de segmentos ou “indivisíveis”
e o volume pode ser considerado como composto de secções
que são volumes indivisíveis ou quase atômicos”.
Também no sentido do desenvolvimento do conceito de continuidade
temos as contribuições de Augustin-Louis Cauchy (1789-1857),
que proporcionaram uma evolução na construção
dos números reais. Cauchy definiu o infinitésimo como: “Diz-se
que uma quantidade variável se torna infinitamente pequena quando
seu valor numérico decresce infinitamente de modo a convergir para
o limite zero”.
O infinitésimo está relacionado com o conceito de limite.
Embora a definição formal de limite, utilizada pelos livros
didáticos, apresente como pressuposto o conjunto dos números
reais perfeitamente definido, na história o processo não
obedeceu a essa lógica. A definição de limite de
Cauchy acrescentou elementos que ajudaram a formalização
final dos números reais, dada por Dedekind.
A definição de limite, dada por Cauchy, foi feita de uma
forma verbal:
“Quando os valores sucessivos atribuídos a uma variável
se aproximam indefinidamente de um valor fixo de modo a finalmente diferir
desse de tão pouco quanto se queira, esse último chama-se
o limite de todos os outros”.
Por meio dos estudos históricos podemos encontrar que a essência
da formação do conjunto dos números reais, os irracionais,
encontra-se na incomensurabilidade, como diz Caraça (1998), a crítica
do problema da medida. Sabemos que essa descoberta levou a crise da Escola
Pitagórica. Os pitagóricos, como eram chamados os estudiosos
da Escola Pitagórica, não levaram adiante o estudo dos incomensuráveis,
pois caso o fizessem, teriam que negar suas próprias bases filosóficas.
Ora, isso foi no séc. VI a.C. somente no séc. XIX foi dada
uma definição para o conjunto dos números reais fundamentando
a continuidade ou completude desse conjunto.
Durante esse longo período, estudiosos desenvolveram conceitos
e idéias, como as citadas acima, que influenciaram na definição
dos números reais. Embora o salto do campo numérico dos
racionais, para o campo dos reais seja o conceito de continuidade ou completude,
há outros conceitos envolvidos. Sabemos que a síntese do
campo dos reais não se concebe por uma particularidade.
Observamos que o conjunto dos números reais é tratado tanto
em livros didáticos como pelos relatos de professores (COBIANCHI,
2001; DIAS, 2002) de uma forma muito particular, por isso a compreensão
parcial e muitas vezes titubeante desse conceito.
O estudo das produções históricas relacionadas à
reta real, que aqui apenas citamos uma pequena parte, nos permite refletir
sobre a forma lógica da construção desse conceito
que poderá nortear o processo do desenvolvimento das atividades
orientadoras de ensino (MOURA, 1996, 2001) que, ao nosso ver, devem compor
a proposta pedagógica.
REFERÊNCIAS
CARAÇA,B.J. Conceitos fundamentais da Matemática.
Lisboa: Tipografia Matemática Ltda,1998.
COBIANCHI, A. S. Estudos de continuidade e números reais: matemática,
descobertas e justificativas de professores. Rio Claro, 2001. Tese (Doutorado
em Educação Matemática) - Instituto de Geociências
e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista.
DEDEKIND, R. Essays on the theory of numbers. New York: Dover Publications,
1963.
DIAS, M da S. Reta real: conceito imagem e conceito definição.
São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em Educação
Matemática) - Centro das Ciências Exatas e Tecnologia, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora.
In: Castro, A. D.; Carvalho, A. M. P. (Eds). Ensinar a ensinar. São
Paulo: Pioneira Thomson Lerning Ltda., 2001. p. 143-162.
MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora, Bolema, n.
12, 1996. p. 29-43.
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